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Felipe Zmoginski

O dia em que andei em um carro autônomo chinês

Felipe Zmoginski

04/12/2018 04h00

 


Carro autônomo: motorista é exigido na hora de "dar um jeitinho"

Andar em um carro autônomo, na China, pode ser uma experiência incrível, mas começa com uma decepção: há um motorista sentado no cockpit do veículo. Em tese, ele não está lá por incapacidade técnica do veículo autônomo, mas porque as leis de trânsito local assim exigem. Por mais que o carro faça tudo sozinho, é preciso ter um humano atento ao volante.

O carro em que tive a oportunidade de fazer um passeio é um Lexus, divisão de luxo da montadora japonesa Toyota. Toda tecnologia embarcada, no entanto, é chinesa, desenvolvida pelo Baidu, companhia para a qual trabalhei por cinco anos, entre 2012 e meados deste ano. De acordo com Allan Dongchen, vice-presidente de desenvolvimento de negócios para inteligência artificial do Baidu, a companhia não desenvolve (e nem tem planos de fazê-lo) veículos automotores, mas apenas o hardware e o software para tornar os veículos já existentes em máquinas capazes de conduzir passageiros sozinhos. "Criamos uma plataforma que pode ser acoplada em praticamente qualquer veículo comercial, tornando-os capazes de rodar sem motorista", diz Dongchen.

Para que seja capaz de detectar obstáculos, o veículo autônomo é equipado com uma espécie de "sonar" sobre seu teto, que gira incessantemente mapeando a movimentação ao redor. Os dados captados são todos armazenados e processados, em tempo real, por um servidor com mais de um metro de extensão, acomodado no porta-malas.

No atual estágio de desenvolvimento, o Lexus que testei como passageiro, tinha o bagageiro praticamente inutilizado pelo servidor. "Esta não é uma parte difícil de resolver; podemos minimizar a CPU para liberar o porta-malas, mas no atual estágio estamos focando esforços em aprimorar o engine de condução", afirma o executivo do Baidu. Por razões de proteção à propriedade intelectual da empresa, nem o CPU nem o interior do carro puderam ser fotografados por mim.

Se, do lado externo, há um radar sobre o teto do carro, na parte interior do veículo nada de diferente pode ser notado, a não ser por um tablet de 19 polegadas instalado no painel. O display mostra, em tempo real, o que o engine do carro está "enxergando", como a aproximação de outros veículos ou a aproximação de um pedestre. O motorista apenas observa a movimentação e pode intervir, se avaliar que alguma situação de risco se aproxima. No teste do qual participei, nos arredores da sede da empresa, no bairro de Haidian, zona noroeste de Beijing, em ao menos uma situação o motorista interveio no passeio.


Micro ônibus leva passageiros ao metrô: rota pré-definida ajuda na automação

Nosso Lexus se deslocava a baixa velocidade, algo como 30 km/h, quando outro veículo não só cruzou sua frente como estacionou, ocupando uma faixa de rolamento, para desembarcar uma passageira. Em português claro, o carro a nossa frente "estacionou em fila dupla". O engine autônomo pareceu notar a situação inusitada e parou, aguardando que o caminho a frente se definisse. Como o episódio parecia demorar demais para se resolver, o motorista tocou em um botão no tablet do painel e, por um instante, "desligou" o modo autônomo, "esterçando" o pneu para continuar a viagem. No segundo seguinte, voltou a ligar o modo autônomo.

De acordo com a explicação que recebi, os carros autônomos são programados para agir rigorosamente dentro das leis de trânsito e, naquele momento, o motorista quis encontrar uma saída fora das normas, desviando de um veículo parado com uma passageira em pleno desembarque. Traduzindo, é como o "jeitinho" que muitos de nós damos para nos virar no trânsito, o que me faz intuir que, se o motorista não interviesse, nós ficaríamos parados atrás do veículo em fila dupla até que ele decidisse sair de lá. Segundo o executivo do Baidu, carros autônomos são classificados em 5 níveis de autonomia e o veículo que testei poderia ser classificado como "nível 4", ainda em testes.


Imagem estilizada do interior do veículo: tablet revela o que o carro "vê"

A solução também é usada em pequenos ônibus para até oito passageiros, que cumprem rotas pré-determinadas, transportando passageiros de um campus a outro da companhia ou levando-os até a estação de metrô mais próxima, ao final do expediente. Veículos menores, desenhados para o transporte de mercadorias, também são testados com o engine que os torna autônomos. "Há muitas aplicações possíveis para estes carros. Na verdade, estamos no início de uma nova era em que nem mesmo a indústria sabe quais aplicações eles terão no futuro", afirma Dongchen.

Entre os usos possíveis estão o transporte de lixo hospitalar, material radioativo ou o transporte de produtos perigosos, para os quais é muito arriscado o uso de um motorista humano, embora, em tese, outros usos sejam possíveis, se houver interesse econômico que justifique, como mover estoques dentro de um armazém ou transportar suprimentos em uma rota considerada "perigosa".


Carro para transportar objetos: possível uso em rotas perigosas

O carro que testei não possuía tecnologias adicionais de inteligência, como reconhecimentos de voz e face. De acordo com a empresa, o assistente virtual da companhia, chamado de XiaoDu, já está em uso em alguns veículos autônomos e permite, por exemplo, que um passageiro ordene, por comando de voz, que o carro abra ou feche as janelas, ligue o som, troque de rádio, ajuste a temperatura do ar-condicionado, recline os bancos ou destrave o tanque de gasolina. Câmeras de reconhecimento facial podem decidir, ainda, quem são as pessoas autorizadas a abrir as portas ou ordenar a ignição do veículo, substituindo totalmente o uso de chaves e controle-remoto.

Ao fim do teste, saio com a sensação de que, apesar de toda tecnologia embarcada, ainda está distante o dia em que poderemos ir a uma concessionária comprar um veículo desses para uso no dia a dia. Do mesmo modo, para mim ficou claro que "carro autônomo" não é apenas um nome bonito para as companhias fazerem marketing. De fato, há um notável avanço tecnológico e uma real capacidade de os carros nos conduzirem pelas cidades e estradas sem motoristas ao volante.

Sobre o autor

Felipe Zmoginski foi editor de tecnologia na revista INFO Exame, da Editora Abril, e passou pelos portais Terra e America Online. Foi fundador da Associação Brasileira de Online to Offline e secretário-executivo da Associação Brasileira de Inteligência Artificial. Há seis anos escreve sobre China e organiza missões de negócios para a Ásia. Com MBA em marketing pela FGV, foi head de marketing e comunicações do Baidu no Brasil, companhia líder em buscas na web na China e soluções de inteligência artificial em todo o mundo.

Sobre o Blog

Copy from China é um blog que busca jogar luzes sobre o processo de expansão econômica e desenvolvimento de novas tecnologias na China, suas contradições e oportunidades. O blog é um esforço para ajudar a compreender a transformação tecnológica da China que ascendeu da condição de um país pobre, nos anos 80, para potência mundial.